Nem só o educativo “educa”

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extraído do link: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=11736

Discurso escolar baseado em livros ignora os jogos eletrônicos, cotidianamente presentes na cultura audiovisual de crianças e jovens

Fabiano Curi

Nos últimos anos, um novo vilão tem assustado pais e educadores: o videogame. Considerados responsáveis por comportamentos violentos dos jovens e transmissores de valores pouco abonadores para as crianças, os jogos eletrônicos recebem as mesmas análises acusatórias que sofreram no passado mídias e formas de entretenimento como os quadrinhos, o rock, o cinema e a televisão. O despreparo dos professores para lidar com as tecnologias de comunicação e lazer que fazem parte da rotina de seus alunos e o desconhecimento que os pais têm dos hábitos de seus filhos já ganharam respaldo da mídia e de grupos políticos na demonização dos jogos.

Nos EUA, a proliferação de videogames levou políticos de projeção como a senadora democrata e ex-primeira-dama Hillary Clinton a culpar os jogos por “roubar a inocência de nossas crianças”. Contudo, os ataques aos jogos vão contra interesses de uma indústria do entretenimento que movimentou mais de US$ 7 bilhões com games em 2004 apenas nos EUA. A PriceWaterhouse apresentou em seu relatório Global Entertainment and Media Outlook – 2004-2008 uma previsão de crescimento global da indústria de mídia e entretenimento de 6,3% ao ano até 2008. Nesse mesmo período, os videogames crescerão 20,1% ao ano, chegando a girar US$ 55,6 bilhões no mundo todo em 2008.

Tal crescimento já atraiu o interesse de grandes conglomerados de comunicação, como SEGA, Nintendo, Microsoft, Sony, Nokia e Disney, que inserem os videogames em grandes pacotes de produtos culturais para consumo global, envolvendo livros, músicas, filmes e programas televisivos. Dessa forma, obras como Harry Potter saem dos livros para as telas, trilhas sonoras, brinquedos e, invariavelmente, para a frente do joystick.

No Brasil, as empresas que desenvolvem jogos ainda são poucas. Apenas 61 fazem parte da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames). “A maioria produz jogos para celulares”, revela Alexandre MacHaddo, diretor de comunicação da entidade. Apesar de não ter condições de competir com as grandes produções estrangeiras e sofrer muito com a pirataria, o mercado doméstico já teve crescimento considerável, uma vez que, há cinco anos, somente 18 empresas brasileiras produziam games.

O jogo na escola – Enquanto isso, os discursos escolares baseados em livros ignoram os jogos, apesar de eles estarem cotidianamente presentes na cultura fortemente audiovisual das crianças e jovens. “Acredito que é fundamental que os adultos interajam com o universo dessa geração que nasceu imersa no mundo tecnológico”, afirma a pedagoga Lynn Alves, professora do Departamento de Educação e Comunicação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e autora do livro Game Over: Jogos Eletrônicos e Violência (Editora Futura, 256 págs., esgotado). “É importante compreender essa linguagem que emerge das diferentes telas – do computador, do celular, entre outras – pois, do contrário, essa relação dialógica que deve permear todas as interações, principalmente as pedagógicas, pode distanciar os alunos não só dos professores, mas também da escola”, adverte.

Para Lynn, os professores devem entrar no universo da “geração net”, ou seja, é preciso que joguem. “A tarefa não é fácil, mas as pesquisas que vêm sendo realizadas podem contribuir bastante para a parceria entre games e educação”, comenta. As pesquisas mencionadas pela pedagoga são o início de um trabalho que vem sendo feito em diversos lugares do mundo, inclusive no Brasil, para estudar com profundidade os jogos eletrônicos e seus impactos na sociedade e na educação. Os estudos, já nomeados de game studies em muitos países, analisam diversos aspectos dos jogos: desenvolvimento tecnológico, conteúdo, narrativas, impacto no comportamento dos jogadores e possibilidades em ambientes educativos e profissionais.

Nos últimos anos, principalmente nos EUA, pesquisadores tentam desvendar se os jogos violentos são maléficos ou inofensivos, assim como já fizeram com outras mídias, especialmente com a televisão. Os resultados costumam ser conflitantes: ora apontam para a vilania dos jogos na educação das crianças, ora para a incapacidade de provocar estímulos negativos. Em alguns casos, esses jogos são até mesmo apontados como benéficos para o desenvolvimento de habilidades motoras e de raciocínio lógico.

Entretanto, essas pesquisas, que servem para alarmar ou acalmar pais e educadores que não sabem como proceder diante do fascínio que os jogos exercem sobre as crianças, estão começando a dividir espaço com projetos e estudos que visam incorporar os jogos em ambientes de aprendizagem.

Recentemente, durante o I Seminário Jogos Eletrônicos Educação e Comunicação, em Salvador (BA), o professor Adriano Oliveira, da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), na Bahia, afirmou que “a tecnologia de videogames não precisa necessariamente produzir um videogame”. O que ele quer dizer é que muitos jogos podem contribuir para atividades diversas a partir de sua estrutura, conhecida pelos que pesquisam e produzem games como engine.

O engine, de maneira simplista, é a base tecnológica de programação na qual será desenvolvido o jogo. A partir de um engine, programadores podem fazer um jogo ou criar um ambiente virtual qualquer sem as características de um game. Pode ser a reconstrução virtual de um espaço ou de um cenário para ser explorado por usuários, por exemplo. Alguns engines são comercializados por empresas a preços que podem chegar a US$ 1 milhão. Outros são gratuitos e muito utilizados por universidades pelo mundo todo na produção de softwares que podem contribuir bastante em ambientes educativos e em treinamentos.

Recursos – Um dos problemas na criação de jogos para a educação é o financiamento dessa produção. “Jogos educativos não geram dinheiro e a indústria não se interessa por isso”, explica o professor Esteban Clua, do VisionLab da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Por isso, investimentos em jogos para a educação precisam vir de outras fontes: governo, por exemplo. “O Governo Brasileiro já está oferecendo recursos para entretenimento”, diz Clua. Este é o tipo de iniciativa que pode ajudar centros acadêmicos e de pesquisas em jogos a desenvolverem novos produtos que auxiliem na educação.

Algumas instituições estrangeiras se voltaram para este campo. O MIT, por exemplo, vem recebendo volumosos aportes financeiros da Microsoft no seu projeto Games-to-Teach. O objetivo é desenvolver protótipos conceituais de entretenimento educacional interativo em áreas como matemática, ciências e engenharia. De acordo com Clua, alguns desses projetos do MIT são bastante simples, mas trazem contribuições para a educação.

Entre os pesquisadores de videogames, existe uma concordância de que não são apenas os jogos que recebem a chancela de “educativos” os que servem para educar. Conforme escreveu em um artigo o pesquisador Kurt Squire, do departamento de estudos comparados de mídia do MIT, “os educadores se preocupam com as conseqüências sociais do jogo e ignoram o seu importante potencial educacional”. Para Lynn Alves, da UNEB, “jogos de simulação, como o Sim City, permitem o exercício do planejamento, da antecipação, do controle e da previsibilidade, entre outros”. Ela lembra também as possibilidades de um jogo como Age of Empires, no qual o jogador deve administrar um império, para temas históricos.

Além desses jogos, existem alguns outros que vêm se tornando febre entre os jogadores e que são vistos por pesquisadores como enriquecedores em ambientes educacionais: os MMORPG, sigla em inglês de Massive Online Multiplayer Role-Playing Game, conhecidos no Brasil como “jogos massivos”. Esses games permitem que o jogador crie um personagem em uma rede que muitas vezes recebe alguns milhões de jogadores simultaneamente e interaja com o ambiente virtual e com outros jogadores. Clua cita o exemplo de uma escola norte-americana que usou um jogo desses para recriar o ambiente dos peregrinos no século 17. “Comparado com alguns jogos mais atuais, como o Second Life, este jogo é pobre graficamente, mas os alunos aprendem se divertindo.”

Esse prazer ao aprender é algo também salientado por Lynn: “Infelizmente, a escola hoje termina sendo um espaço de desprazer e, se não há prazer, não há aprendizagem”. Ou, como escreveu em 1938 o filósofo holandês Johan Huizinga em Homo Ludens: “É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo”.

– Projetos Games-to-Teach, da Microsoft: www.educationarcade.org/gtt/

  • Quem estuda os jogos

A popularização dos jogos tem chamado a atenção de muita gente disposta a pesquisar o assunto no Brasil das mais variadas formas. Hoje, duas faculdades já oferecem cursos de graduação: a Anhembi Morumbi, em Design e Planejamento de Games, e a Unicsul, em Design de Jogos Digitais. Além disso, várias outras instituições oferecem cursos livres para a formação de programadores e artistas.

De acordo com Esteban Clua, professor do VisionLab da PUC-Rio, o país já conta com tecnologia adequada e artistas criativos. “O que falta é dinheiro”, diz. Ele conta que o setor também carece de bons profissionais de comunicação para a produção de roteiros de jogos. Um passo importante, avalia, seria abrir espaço para a chegada das principais empresas desenvolvedoras de jogos no Brasil para que os profissionais daqui se envolvam com grandes produções.

Além do ensino de games com o objetivo de formar profissionais, já há uma mobilização no sentido de agrupar pesquisadores das áreas de Tecnologia, Comunicação, Pedagogia e outras para um intercâmbio maior das pesquisas que envolvem jogos e educação. O próprio Clua é um dos que encabeçam o projeto da Rede Brasileira de Jogos e Educação, que começará a funcionar nos próximos meses envolvendo pesquisadores de todo o Brasil. A empreitada, segundo o professor, deve divulgar pesquisas, promover congressos e estabelecer contato com empresas e órgãos governamentais.

  • Don Quixote enlouquece?

O pesquisador uruguaio Gonzalo Frasca tem sido um dos estudiosos mais atuantes na divulgação científica da cultura dos games e na produção de jogos com conteúdos sérios. Trabalha no Centro de Pesquisa de Jogos para Computador da IT Universitetet, de Copenhague (Dinamarca), e é responsável por páginas na internet como a Ludology.org (http://ludology.org) e Game Studies (http://www.gamestudies.org). Ele também é um dos responsáveis pela Newsgaming (http://www.newsgaming.com), uma iniciativa de produção de jogos com temas políticos e noticiosos, como o 11 de Setembro, em Nova York (EUA), e os atentados no metrô de Madri (Espanha). Frasca falou à Educação sobre a cultura dos games e sua relação com ambientes educativos.

  • Hoje, o videogame é tratado como mídia complexa que deve ser discutida e pesquisada mais seriamente?

A discussão sobre a potencialidade dos efeitos prejudiciais do videogame continuará presente por vários anos. Na verdade, isso acontece sempre que uma nova forma de mídia emerge. As pessoas costumavam se preocupar com a televisão, rádio e cinema. Se você pensar sobre isso, toda a idéia por trás de Don Quixote é de que os romances podem enlouquecer! Normalmente, as pessoas que temem os videogames são as pessoas que não os jogam. Com o passar do tempo, as pessoas mais velhas morrem e os jovens crescem com os jogos e se tornam adultos que sabem que os videogames são apenas mais uma mídia com coisas boas e ruins, mas você deve ser crítico em relação a ela. Eu não espero que a discussão sobre os “perigos” do videogame desapareça nos próximos 10 ou 15 anos, mas que esse período tenda para mais pesquisas e melhor entendimento dessa fascinante manifestação cultural, muito mais rica e complexa do que aquilo que é apresentado pela mídia.

  • Você acredita que jogos comerciais, como os best-sellers, podem também ser usados para que as pessoas analisem de forma crítica os seus temas?

Não há uma resposta simples para esta questão. Depende. Sim, jogos comerciais têm potencial enriquecedor, como muitos deles hoje em dia. Penso em Age of Empires, The Sims, Sim City e GTAIII, por exemplo. Entretanto, este ainda é o início dos jogos para computadores. Nós ainda teremos de esperar para observar se eles evoluirão para uma forma de arte, como nos filmes.

Grandes empresas e instituições, como o exército norte-americano, estão usando jogos como forma de publicidade e até de propaganda ideológica. Você tem a experiência de produzir jogos com finalidades políticas. Acredita que esse tipo de produto é bem aceito pelos jogadores?

Por enquanto, jogos de publicidade e propaganda são novos e experimentais. De qualquer modo, acredito que eles são aceitos. America’s Army (jogo desenvolvido pelo exército norte-americano) é um tremendo sucesso entre os jogadores. Jogos de campanhas políticas mal começaram, mas os resultados têm sido positivos. De qualquer forma, é importante entender que não há mágica envolvida: não é porque alguém joga um jogo que ele vai comprar um produto ou votar em um candidato. Trata-se de um processo lento até que as pessoas se acostumem com publicidade e mensagens em seus jogos da mesma forma com que se acostumaram com isso no rádio, na televisão e no jornal.

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